A retirada americana
Livros de história talvez apontem o dia 19 de agosto de 2010 como o fim da guerra no Iraque. Ou, pelo menos, de uma delas. A retirada das últimas tropas de combate dos Estados Unidos de território iraquiano põe um ponto final no engajamento de Washington em confrontos armados no país, mas isso é apenas parte da história.
A guerra iniciada em 2003 foi vencida rapidamente, com Bagdá sendo tomada após menos de um mês. Pode-se dizer que em seguida veio um segundo conflito, que misturou insurgência e disputas étnicas. Durou bem mais do que a primeira, um total de sete anos. Os Estados Unidos agora encerram seu envolvimento em combates no país, mas o Iraque segue marcado por atentados suicidas da Al-Qaeda e uma paralisia política. Apenas dois dias antes da retirada final, militantes promoveram mais uma carnificina na capital, com um atentado que deixou 51 mortos. Um alto comandante do Exército do Iraque diz que o país não está preparado para a retirada total das tropas americanas, prevista para o ano que vem (até lá 50 mil soldados continuarão dando treinamento e protegendo interesses dos EUA). O governo americano ensaia dizer que a missão está encerrada, após avanços na redução da violência. Mas não ousa declarar missão cumprida. Para os iraquianos, a paz ainda é um sonho distante.
Os Estados Unidos estão deixando o conflito por vários motivos, entre eles porque sabem que não têm como promover mais avanços significativos. Após gastar quase US$ 1 trilhão ao longo de sete anos, Washington entrega uma nação que ainda não conseguiu formar um governo, cinco meses após as últimas eleições. Atentados suicidas são uma constante, e o Iraque corre o risco de se tornar palco de uma grande disputa por influência, envolvendo o Irã, o fanatismo da Al-Qaeda, grupos iraquianos sunitas e os curdos, que controlam o norte do país. O Iraque está muito longe de ser uma moderna e pacífica democracia, mas a superpotência não se considera capaz de fazer muito mais a respeito.
A retirada das tropas americanas diz muito mais sobre o futuro papel dos Estados Unidos no mundo. Quando podia gastar, o país jogou centenas de bilhões de dólares no Iraque e outas centenas de bilhões no Afeganistão, outra guerra em que enfrenta dificuldades sérias. Mas, após a crise financeira, que quase virou depressão, os americanos mal conseguem manter a recuperação da sua economia. Sua estrutura militar não terá mais recursos, pelo contrário, sofrerá cortes. Se quisessem invadir o Irã para conter o programa nuclear persa, haveria muitas dúvidas sobre suas chances de sucesso. O momento, ao que tudo indica, não é de imperialismo ou interferência militar de Washington em nações mundo afora. É de recuo.
O secretário da Defesa, Robert Gates, promete o início da saída das tropas americanas do Afeganistão para 2011. No Oriente Médio, atores locais, como Irã e Turquia, têm cada vez mais prestígio e influência. A América Latina hoje é muito mais do Brasil e das nações ibéricas do que dos Estados Unidos. Na África, China, Brasil, Índia ganham cada vez mais espaço. No Extremo Oriente a influência americana ainda é grande, com a Coreia do Sul ciente de que precisa de suas tropas para conter a retórica bélica dos comunistas do norte. Mas, na Europa, os Estados Unidos perderam espaço para os russos, que se beneficiam da sua importante posição de exportador de energia. Barack Obama gosta do mundo exterior, onde é admirado por suas ideias e por sua postura multilateral e diplomática. Mas o presidente sabe que o momento é de cuidar das mazelas internas, como a alta taxa de desemprego, os danos ambientais causados pelo vazamento da BP ou a violência na fronteira com o México. A retirada americana vai muito além do Iraque.
Os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva reúnem vários marcos, de grandes feitos a lamentáveis gafes, em sua política externa. Há momentos marcantes envolvendo a relação do Brasil com o resto da América do Sul, a ascensão ao lado de Rússia, Índia e China, a decisiva ação brasileira dentro da OMC (Organização Mundial do Comércio), o respeito obtido junto aos Estados Unidos, a crescente influência na África, a consolidação do Brasil como natural candidato a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e o diálogo político e comercial com regimes autoritários. Analistas brasileiros tendem a dar mais destaque a pontos positivos ou negativos, dependendo de sua visão ideológica sobre como o Brasil deveria se comportar diante do mundo. Mas, apesar de tantos papéis de destaque, a política externa brasileira recente corre o risco de ser marcada pela polêmica aproximação com uma nação que há poucos anos tinha pouca relevância para o Brasil: o Irã dos aiatolás, do petróleo, do programa nuclear e do apedrejamento de mulheres adúlteras.