Ministério da Comida
Em 1940, a vida da dona-de-casa aqui em Londres não era fácil.
Carne fresca era artigo raro e de luxo, frutas importadas como banana e laranjas, nem pensar. Todos os itens que formavam o que seria a cesta básica da época – obtidos em quitandas e armazéns (supermercados e geladeiras, só nos anos 50) - eram racionados.
E lá fora, choviam as bombas da Luftwaffe.
Mas aqui há uma história boa de ser contada. A de como a guerra, 70 anos atrás, forçou centenas de milhares de pessoas a aprender a produzir a própria comida, a reciclar, a combater o desperdício e a manter uma dieta balanceada, noções tão respeitadas nos dias de hoje.
Aprendi em uma exposição sensacional no Imperial War Museum (Museu Imperial da Guerra) que esse esforço coletivo foi coordenado pelo governo, que criou, em setembro de 1939, o Ministry of Food – o Ministério da Comida – com a missão de supervisionar o racionamento de comida e orientar a população, que se preparava para a Segunda Guerra.
Quando a guerra começou, o país produzia apenas um terço de sua comida. A ideia era mudar esse quadro, reduzindo drasticamente a dependência de importados.
As primeiras grandes mudanças vieram no campo. Grande parte dos pastos foram transformados em plantações, quando se constatou que um acre (4 mil m²) de pasto rendia carne para alimentar duas pessoas, e que esse mesmo acre poderia dar batatas, cebolas e cenouras para alimentar até 40 pessoas.
A criação de porcos, frangos e ovelhas foi reduzida, só a de bovinos aumentou, por causa da demanda, nas cidades e no Exército, por leite.
A mecanização floresceu, dezenas de milhares de mulheres e alunos de escolas ajudaram, voluntariamente, na lavoura e nas colheitas – juntamente com milhares de prisioneiros de guerra. A produção de trigo, batatas e cereais disparou.
Depois vieram as cidades. Campanhas por rádio, cinema e cartazes divulgavam o espírito do faça-você-mesmo em lemas como Dig for Victory (Cave pela Vitória), Grow Your Own (Plante o seu próprio) e War on Waste (Guerra ao Desperdício).
Lord Woolton, o ministro da Comida, dizia no rádio que “cada fileira extra de legumes e verduras economiza transporte marítimo” – aqui vale lembrar que mais de 30 mil pessoas morreram nos navios mercantes que levavam víveres ou outros bens para a ilha.
Em cartilhas, o governo ensinava e incentivava a população a fazer o seu próprio adubo, a criar galinhas e a plantar nos jardins de casa - ou nos allotments (coisa bem europeia, lotes alugados nos subúrbios para serem aproveitados nos fins de semana) – os legumes e verduras que dão bem na Grã-Bretanha: cenouras, batatas, parsnip (pastinaca?), repolho, cebola, alho-porró, nabo, brócolis e couves. E dá-lhe cenoura e batata.
Lendo a lista, dá para entender porque tantos morriam de saudade de qualquer coisa que não fosse batata ou cenoura. A comida, nesses tempos de racionamento, em que as pessoas tinham direito a três fatias de bacon e 75g de queijo por semana, era muito boring (sem graça).
Sabendo disso, o Ministry of Food encomendava a chefs conceituados receitas de pratos feitos com esses produtos, para depois divulgá-las com ar de “nova sensação”.
O mais famoso, bastante conhecido até hoje, foi a Lord Woolton pie (foto abaixo), uma torta vegetariana criada pelo chef Francis Latry, que comandava a cozinha do famoso Hotel Savoy, em Londres.
A receita, divulgada oficialmente pelo jornal The Times, em 26 de abril de 1941, é ridiculamente simples:
Cortar em cubos batatas, couve-flor, swede (dzܱ-Բ-岹-é) e cenouras (meio kg de cada).
Ferver por dez minutos (em água suficiente para cobrir os legumes) acrescentando três cebolinhas, uma colher de chá de extrato de legumes (caldo de legumes) e outra de farinha de aveia, e mexendo de vez em quando para que os legumes não grudem na panela.
Deixar esfriar. Por numa tigela. Acrescentar salsinha picada e cobrir com uma tampa de massa feita de batatas e farinha integral. Assar num forno até a tampa estar marrom. Servir com gravy (molho).
Vi um documentário em que um chef seguiu a receita à risca. Os convidados comeram e gostaram – com entusiasmo contido, diga-se.
O fato é que comer, na época, era uma experiência exclusivamente ligada à necessidades de alimentação. Comia-se para ter energia suficiente para enfrentar a guerra e o frio.
E, sob um certo viés, nunca se comeu tão bem. Isso é o que mais me impressionou nessa história toda: que o país inteiro nunca esteve tão saudável e em forma como no fim da guerra, em 1945.
E aviso: no próximo post, vou falar mais do racionamento e do legado disso tudo.
dzԳáDzDeixe seu comentário
Post muito bacana! Só tenho uma pergunta: O que seriam parsnip e swedes?
Gabi, pus um link nas palavras, ligando a um post que explica o que são parsnip e swede.
A coisa mais similar em sabor no Parsnip em ingles e batata baroa (mas nao e a mesma familia)
acho muito importante que voce coloque o acento no "nunca se comeu tao bem". ja ouvi a mesma frase pronunciada por uma especialista sobre a saude alimentar dos italianos logo apos o fim da segunda guerra: comiam menos e de forma mais equilibrada, e portanto estavam muito melhores do que hoje. em tempos de caça feroz a picanha, que desmata e consume energia em modo exagerado, penso que deveriamos rever o nosso conceito de "comida de pobre", nao acha?
Esqeci falar Para od escoces, o 'parsnip' e um 'swede' para comer com haggis
Matéria adorável, sou anglófila, rsss - mas desconhecia esse Ministério!
...muito bom esse seu post.
ʲéԲ...
Sempre que tenho tempo leio seu blog. E toda vez aprendo alguma coisa... Alguns textos (como o das berries) eu até imprimo.
Faça um livro!
Muito legal!
O lance do racionamento foi sério. As donas-de-casa foram obrigadas a se tornarem mais frugais...
a matéria está show! também vi a exposição e a considero imperdível para aqueles que estiverem em Londres. Já para os demais a impossibilidade da presença pode ser muito bem compensada com a leitura atenta e reflexiva da cobertura que o Thomas fez: muito em cima do lance, completa e rica em detalhes. A exposição traz realmente reflexões muito importantes no que toca à fome no planeta, aos excessos e as lições que podemos tirar de racionalidade e priorização nos momentos difíceis. Interessante também foram os vários aspectos positivos dessa inicitava do Ministry of Food. As fotos e vídeos da exposição mostram sorriso e otimismo nas pessoas a despeito de tanto sofrimento e dificuldades - nunca se vê nada disso em tempos de guerra! Parabéns pela iniciativa e qualidade da matéria!
Admirou-me que os benefícios de uma alimentação conveniente e modos racionais de utilização de recursos tenham-se tonados coletivos. Tão logo após a releitura, percebendo coexistir com a realidade hodierna novamente, senti-me enriquecido culturalmente. O produto de seu labor intelectual torna-se um complemento à existência humana sofisticada, ou seja, que se distancia conscientemente de comportamentos tidos por "naturais": a desatenção, o esquecimento, a diligência operacioanal quando da manufatura alimentar. Sinta-se, Caro Autor, obrigado a contribuir/partilhar mais e mais suas compreensões internas, pois gratos, permanecemos nós.